Os conservadores-restauradores sem rosto e sem nome

António João Cruz

 

Há dias, foi amplamente noticiada a atribuição do Prémio Vasco Vilalva, pela Fundação Calouste Gulbenkian, ao projecto de restauro e recuperação da Igreja e Torre dos Clérigos. Nas notícias que li, que ouvi e que vi eram referidos a instituição que atribuía o prémio, os membros do júri que tinham feito a escolha e a entidade que tutela o monumento e promoveu os trabalhos que foram premiados. De algumas notícias igualmente constavam referências ao respeito pela integridade física do património edificado, ao recurso a técnicas tradicionais, à recuperação da dignidade e dos valores que estavam perdidos, enfim, ao uso de adequadas metodologias de conservação e restauro, entre outros aspectos que pesaram na decisão do júri. Mas quem desenvolveu o projecto, quem estabeleceu a metodologia de intervenção, quem executou o trabalho que acabou por ser premiado? Qual é a empresa de conservação e restauro ou de recuperação do património que esteve envolvida? Quem são as pessoas que, entre contraditórios valores, escolheram os que deviam ser preservados, decidiram o que devia ser feito e o que não podia ser feito, seleccionaram as técnicas e os materiais a usar?

Este caso não é único. Aliás, nas poucas notícias que vão surgindo na comunicação social relacionadas com intervenções de conservação e restauro que vão acontecendo pelo país, raramente os conservadores têm rosto e nome. Na melhor das hipóteses, salvo as excepções, apenas são anonimamente mencionados os técnicos de conservação e restauro ou, pior ainda, os técnicos de restauro – pior ainda porque conservação e restauro são duas coisas diferentes e cada vez mais se tenta fazer mais conservação e menos restauro. Mas os supostos técnicos raramente são técnicos, isto é meros executantes de operações técnicas, mas sim conservadores-restauradores, ou seja, profissionais que, antes de intervirem numa obra, têm de reflectir sobre o que conservar e sobre o que restaurar; têm de tomar decisões com base em conhecimentos de áreas tão diversas como, por exemplo, a História da Arte e a Química; ou têm que justificar os procedimentos propostos.

Independentemente de os autores das notícias não se terem questionado sobre quem efectivamente foi premiado, os conservadores-restauradores têm a sua quota-parte de responsabilidade nesta situação. Até há pouco, salvo o caso de um Luciano Freire (1864-1934), os restauradores – tipicamente com modestas habilitações académicas – estavam remetidos a uma subalterna e discreta posição entre aqueles que lidam com as obras de arte, tais como os conservadores de museus, os historiadores da arte ou os arquitectos. A função que lhes estava atribuída era a de restituir às obras danificadas o seu estado original, revertendo o tempo, sendo a intervenção tanto mais valorizada quanto menos perceptível fosse – uma outra forma de apagamento. A situação começou a mudar na década de 1980, especialmente quando a formação dos conservadores-restauradores saiu das sombras dos ateliers de restauro e passou a realizar-se em estabelecimentos de Ensino Superior (o que aconteceu a partir de 1989). Desde então, houve mudanças muito profundas no que respeita aos objectivos de uma intervenção e hoje nenhum conservador-restaurador pretende anular os efeitos que o passar do tempo tem numa obra – não só porque sabe que isso não é possível (e não apenas por questões técnicas de execução), mas, sobretudo, porque entende que além dos valores artísticos e estéticos devem igualmente ser considerados os que têm que ver com o uso, a história ou as expectativas, entre outros. Porém, algumas coisas demoram mais a mudar e uma delas é a discrição pública que muitos conservadores-restauradores ainda mantêm e que, naturalmente, de forma significativa marca a imagem que os outros têm deles e da sua actividade.

A conservação e restauro ainda é uma disciplina – entre outras há muito estabelecidas – à procura do seu espaço e ainda não ganhou a voz que intervenções como a agora premiada justificam.

 


Texto escrito em Setembro de 2016, quando foi divulgados os premiados com o Prémio Vilalva 2015, com outro destino, mas que acabou por ser divulgado apenas através do Facebook.