António João Cruz
Director do Mestrado em Conservação e Restauro do Instituto Politécnico de Tomar
Entre as importantes obras de arte da cidade de Tomar que têm sido estudadas e tratadas no Instituto Politécnico de Tomar conta-se o Tríptico da Vida de Cristo, da igreja de São João Baptista. Trata-se de um retábulo em madeira, do início do século XVI, constituído por uma pintura central com, aproximadamente, 260 cm de altura e 200 cm de largura, que representa o Baptismo de Cristo, ladeada por dois painéis volantes que ostentam pinturas nas duas faces. Com o tríptico aberto, tem-se as Bodas de Caná à esquerda e a Tentação de Cristo à direita; com o tríptico fechado observam-se, em pintura monocromática, São João Evangelista e Santo André, respectivamente.
Actualmente, a obra encontra-se no baptistério, para onde provavelmente terá sido realizada, mas nem sempre esse foi o seu espaço. Esta última estadia iniciou-se há cerca de cem anos, depois de o tríptico ter sido restaurado por Luciano Freire (1864-1934), tal como consta da inscrição colocada na moldura do painel central. Com efeito, em 1919, o retábulo estava desmantelado e os três painéis estavam dispersos pela capela-mor e sacristia e foi Luciano Freire – o autor do restauro do Políptico de São Vicente, de Nuno Gonçalves, e de muitas outras pinturas antigas – quem relacionou as pinturas e reconstituiu o tríptico. Como escreveu mais tarde, “foi ao retirar-se, para tratamento, o painel Bodas de Caná, que decorava lateralmente essa capela, e que era o que necessitava mais pronto socorro, que se reconheceu que tinha por detrás pintura a claro escuro, e que portanto se tratava da porta de um tríptico, o que levou logo a retirar do lugar o que lhe ficava fronteiro, do lado da Epístola, por se supor que teria sido o companheiro, o que se confirmou. Onde pararia a parte central? O reconhecer-se como obra da mesma mão, o quadro existente na sacristia, representando o Baptismo de Cristo, e ainda pelo assunto, levou-nos ao convencimento de que estava ali o que buscávamos. Faltava, porém, a este painel bastante na largura, para poder servir como peça central, mas logo se verificou também que tinha havido mutilação para o ajustar ao lugar onde se encontrava. Daí o aceitar-se logo como lógica o que se supusera”.
Das cinco pinturas, a que representa as Bodas de Caná era a que se encontrava mais danificada “por lhe dar o sol em determinados períodos do ano, [e] mal se percebia o que representava, tal a sujidade e negridão dos vernizes. Dera-se em muitos pontos a queda da tinta, sendo a maior avaria dessa natureza, a que incidiu na personagem que no primeiro plano, está vazando um balde de água num dos muitos recipientes em cobre agrupados em volta. A essa figura já faltava além de parte das roupagens, quase toda a cabeça, da qual apenas restava um olho, a ponta do nariz e parte do couro cabeludo, que simula ser rapado”. Quanto à Tentação de Cristo, escreveu Luciano Freire que “estava também muitíssimo suja mas pouco avariada. As faltas de tinta, embora numerosas, eram de somenos importância. O reverso a claro-escuro esse estava regularmente conservado, em ambas as portas. O painel central, representando o Baptismo de Cristo, não estava com muito mau aspecto, faltava-lhe porém […] uma tábua de cada lado”.
Dada a qualidade das pinturas e a situação em que se encontravam, novamente segundo as palavras de Freire, “não havia pois outra coisa a fazer do que reunir agora esses elementos, fazendo-os voltar à sua antiga situação”. O trabalho de restauro foi feito, a partir de 1924, por Luciano Freire no Museu Nacional de Arte Antiga e foi apoiado pela União dos Amigos dos Monumentos da Ordem de Cristo, de Tomar, que tinha sido criada pouco tempo antes.
O restauro do painel central, além de envolver o habitual tratamento de limpeza e reintegração de pequenas faltas de pintura, teve como principal operação a adição de duas tábuas laterais, cada uma com mais de 20 cm de largura, em substituição das que faltavam, tábuas essas que deveriam ser compatíveis com a madeira original e com a secagem que esta tinha tido ao longo de séculos. Segundo Luciano Freire, “a grande dificuldade material foi o não se encontrar madeira de carvalho do comprimento necessário para o completar. Por causa deste contratempo esteve por muito tempo sustado o respectivo tratamento. Por fim resolveu-se o caso adquirindo uma muito antiga vara de lagar, que aberta em várias folhas forneceu o ambicionado elemento para se poder prosseguir nos trabalhos, e ainda noutros que aguardavam recurso idêntico. O trabalho de restauro consistiu principalmente, em completar a parte agora acrescentada”. Os painéis volantes tinham sido reduzidos em altura um pouco mais de 20 cm, o da esquerda no topo e o da direita em baixo, pelo que também nesses casos foi refeito o suporte em falta e, tal como no painel central, reconstituída a respectiva pintura, algo que igualmente foi efectuado nas partes em que a pintura das Bodas de Caná se encontrava danificada.
A reconstituição da pintura perdida num caso como este é, para a maior parte das pessoas, um tratamento não só óbvio, como indispensável. A Luciano Freire, em zonas de menor importância “não repugnou completar a superfície do quadro”, mas, de uma forma geral, “não deixou ainda assim de [lhe] repugnar esse procedimento”. Na ocasião, historiadores houve, como F. Garcês Teixeira, que se congratularam com a decisão e enalteceram a “proficiência” de Freire, mas outros, como Luís Reis Santos, criticaram-no: “Nos nossos restauros segue-se por vezes um critério com que não posso concordar: quando falta qualquer coisa num quadro antigo, inventa-se. […] Neste Baptismo, que é o painel central dc notável tríptico da igreja de S. João Baptista de Tomar, faltavam duas pranchas. Nas abas também faltavam pedaços. Apesar disso parece não ter havido grande dificuldade: fez-se de novo. E nem sequer se previne disto o público”. Hoje, com princípios da Conservação e Restauro diferentes dos princípios seguidos há cem anos, a decisão sobre o que fazer certamente que seria mais ponderada e envolveria maior diversidade de argumentos. Mas, como muito possivelmente aconteceria, mesmo que a decisão também fosse a de reconstituir a pintura em falta por causa da função do tríptico num espaço religioso, muito provavelmente essa operação seria efectuada de forma diferente, de modo que uma observação ao pormenor permitisse perceber o que era original e o que era restauro, algo que não sucede na intervenção de Freire, que é mimética.
Actualmente, as pinturas do Tríptico da Vida de Cristo têm, portanto, uma significativa extensão saída das mãos de Luciano Freire, que vai além de 20 % do total da superfície pictórica, e, considerando outras intervenções que entretanto ocorreram, a pintura original subsiste em menos de 70 % da área total. Convém notar-se, no entanto, que os diversos motivos pictóricos e as diferentes zonas de um quadro não têm igual importância, pelo que o impacto das faltas não é necessariamente proporcional a esses números.
As pinturas originais do tríptico, quinhentistas, têm sido atribuídas a mestre flamengo desde que, em finais do século XIX, Carl Justi apontou algumas afinidades estilísticas que as mesmas tinham com as de Quentin Metsys (1466-1530). As diferenças, explicou-as através da colaboração do seu discípulo Eduardo, o Português, de quem apenas se sabe que trabalhava na oficina de Metsys, em Antuérpia, em 1504 e ascendera a mestre em 1508. Depois de Justi, as atribuições de autoria têm-se mantido essencialmente nesse espaço: Metsys, Eduardo, o Português, ou, de modo mais geral, um mestre muito influenciado pelo estilo do primeiro.
Os resultados obtidos quando o tríptico foi tratado por uma aluna do mestrado em Conservação e Restauro (Érica Eires, que na ocasião ganhou a bolsa de estudo comemorativa dos 20 anos de actividade da empresa Nova Conservação, Lda, que suportou o estudo e a intervenção), sugerem que a obra foi executada na Flandres. Em primeiro lugar, a camada de preparação aplicada sobre o suporte de madeira com o objectivo de proporcionar uma superfície lisa e luminosa mais adequada à pintura é constituída por cré, uma variedade de calcário formada por deposição de microrganismos em ambiente marinho. Com efeito, não obstante o cré ser finamente moído e misturado com cola obtida de peles e cartilagens de coelho ou de outros animais, nas amostras recolhidas nos painéis observam-se nitidamente os microfósseis característicos do cré (cocólitos). Ora, sucede que era esse o material usado no Norte da Europa, enquanto em Portugal a preparação era habitualmente de gesso. Em segundo lugar, o material que dá a cor azul ao rio onde Cristo é baptizado é um raríssimo pigmento, a vivianite, extraído de depósitos sedimentares sobretudo do Norte da Europa e que, até agora, foi identificado em obras dessa região, muito especialmente da Flandres. Quanto aos outros pigmentos identificados no tríptico, como o branco de chumbo, o vermelhão, o amarelo de chumbo e estanho, a azurite ou os ocres, eram de uso generalizado no Ocidente e, por isso, são pouco informativos a este respeito.
Este mesmo estudo, além de mostrar que toda a pintura foi executada sobre uma fina camada constituída por microfósseis marinhos, no rio foi usado um pigmento azul resultante de sedimentos azuis comuns nos rios e pólderes dos Países Baixos e o castanho do chão que as figuras pisam é precisamente de uma terra, mostrou igualmente que o desenho preparatório, realizado sobre a camada de preparação, antes da aplicação das tintas, feito com o objectivo de guiar a pintura, tem características que não suportam a atribuição do tríptico a Metsys ou a Eduardo, o Português. Esse desenho subjacente, hoje escondido pela pintura, mas que a radiação infravermelha permite observar (usando equipamento de reflectografia de infravermelho), é muito mais visível do que é habitual nas obras daqueles e caracteriza-se por um rigor de traços e detalhe dos sombreados que também não encontra paralelo nesses mestres. Se a forma de pintar e o estilo expresso na imagem pictórica são características pessoais do seu autor, tal como as suas impressões digitais, o desenho subjacente não o é menos. No entanto, o desenho do tríptico não tem todo as mesmas características e de forma mais localizada há partes do desenho que têm algumas semelhanças com o observado em obras de Quentin Metsys. Assim, sendo o trabalho de pintura, na época, desenvolvido em oficinas onde, em grande azáfama, além do mestre, trabalhavam colaboradores, aprendizes e ajudantes, fica em aberto a possibilidade de o tríptico ter saído da oficina de Metsys, ainda que essencialmente de outras mãos.
Independentemente da autoria, o desenho subjacente foi rigorosamente seguido nas pinturas da face exterior dos volantes, mas nalguns motivos das outras representações isso não aconteceu. É exemplo o pormenor aqui apresentado do painel sobre a Tentação de Cristo que mostra que a árvore inicialmente desenhada, nua e de grande altura, não é a árvore, frondosa e baixa, efectivamente pintada (ao contrário do que aconteceu com a pequena torre ao lado). Não obstante o uso de modelos previamente realizados testemunhado pelos motivos desenhados com rigor e detalhe, desvios como aquele permitem concluir que a pintura não estava completamente decidida quando começou a ser concretizada.
Na perspectiva mais geral da história da pintura ocidental, pelo menos numa perspectiva material, o tríptico merece destaque por ser um dos raros e mais antigos casos conhecidos de uso de vivianite como pigmento azul em pintura sobre madeira ou tela. Curiosamente, um dos outros casos é uma pintura da National Gallery, Londres, atribuída a um seguidor de Quentin Metsys.
António João Cruz, "Do nascimento e da vida das obras de arte: o Tríptico da Vida de Cristo, da igreja de São João Baptista", O Templário, 38(1872), 2024-11-7, p. 6-7