António João Cruz
Director do Mestrado em Conservação e Restauro do Instituto Politécnico de Tomar
A actividade a que habitualmente se dá o nome de restauro de obras de arte é, em geral, reconhecida como muito meritória, mas, simultaneamente, é objecto de um profundo desconhecimento e de muitos equívocos, por vezes mesmo por quem tem interesses no Património Cultural.
Restauro, de acordo com os dicionários, como por exemplo o da Academia das Ciências de Lisboa, significa “acção de reparar o que se encontra danificado, em mau estado”. Esse nome, no entanto, há algum tempo que não descreve os objectivos dos profissionais dessa área. Com efeito, se esse nome e os objectivos subjacentes estavam de acordo com o que o Luciano Freire, há cem anos, fez no retábulo da Vida de Cristo da igreja de São João Baptista, isso já não acontece actualmente. Luciano Freire – seguramente o mais conhecido restaurador português desde que em 1910 tratou do políptico de São Vicente, de Nuno Gonçalves – era um pintor e, à semelhança do que foi comum até há pouco, nas suas intervenções de restauro utilizou as competências que tinha adquirido como artista.
Porém, na 2.ª metade do século XX, começou a desenvolver-se a ideia de que a intervenção numa obra de arte não devia justificar-se apenas pelas suas características estéticas ou artísticas. Em primeiro lugar, muitas dessas obras nem sequer foram criadas com o objectivo de serem arte, mas apenas instrumentos de comunicação de uma mensagem religiosa, social ou politica ou auxiliar de devoção. Em segundo lugar, essas obras têm uma história e são o testemunho das vicissitudes porque passaram e, por isso, as marcas do tempo são igualmente relevantes. Tentar apagá-las é, hoje, uma forma de destruição do Património. São essas marcas que fazem a diferença entre um original antigo e uma réplica contemporânea.
Cada obra que nos chega do passado tem em si um vasto conjunto de valores que, além dos méritos estéticos ou artísticos, inclui, por exemplo, valores relacionados com o uso, o significado histórico, o registo documental, o exemplo didáctico, a relação sentimental ou as expectativas do proprietário, cuja importância tem que ser cuidadosamente avaliada através de detalhado estudo multidisciplinar que é sempre necessário empreender. Para usar a expressão corrente, cada caso é um caso. Consequentemente, se o tratamento mais adequado num caso pode ter como objectivos recuperar a imagem original e melhorar a sua apreciação estética ou artística, sendo necessário para isso minimizar a perturbação causada pelos danos, noutros casos pode não se pretender atenuar o efeito visual desses mesmos danos.
A este respeito parece-me especialmente instrutivo o caso do biombo oriental pintado, de madeira, que há poucos anos entrou para tratamento no Instituto Politécnico de Tomar (IPT). Apresentava numerosos repintes grosseiros que desvirtuavam os motivos pictóricos e tinha marcas, feitas com instrumento aguçado, que pareciam de vandalismo. Numa situação destas, seria expectável que o tratamento envolvesse a remoção dos repintes e a reintegração das zonas danificadas, ou seja, o seu nivelamento e a sua reconstituição pictórica. Certamente que assim faria Luciano Freire ou qualquer outro restaurador com a sua formação. No entanto, a decisão tomada na intervenção realizada no âmbito de um trabalho de mestrado foi a de, obviamente com a concordância do proprietário, manter esses repintes e essas marcas, por muito inestéticas que fossem, uma vez que, segundo o estudo propositadamente efectuado, eram um raro e valioso testemunho histórico – mais concretamente da perseguição a que os cristãos estiveram sujeitos na China no início do século XIX.
Independentemente dos valores privilegiados numa intervenção – estético-artísticos ou outros –, esta tem sempre como principal objectivo interromper ou, pelo menos, minimizar os processos de degradação em curso e evitar que outros se venham a desenvolver. Só assim a obra que até nós chegou do passado poderá igualmente ser usufruída pelas gerações futuras. Ora o que a este respeito se faz, quer intervindo no ambiente em que a obra é mantida, nomeadamente controlando a luz e a humidade atmosférica, quer, por exemplo, através da construção de um adequado sistema de acondicionamento ou de exposição, nada tem que ver com restaurar, mas sim com conservar. Pouco adianta restaurar uma obra se não são tomadas as medidas necessárias para a sua conservação. Isto é parte integrante de uma intervenção e, por isso, hoje designa-se por Conservação e Restauro a actividade e por conservador-restaurador o responsável pela mesma.
Por outro lado, mesmo quando há alguma intenção de recuperar a imagem original, como frequentemente acontece com uma pintura não obstante tratar-se de um mito, isso é feito de forma limitada, sem diminuir o valor histórico da obra. Por exemplo, não se pretende necessariamente refazer as partes em falta, designadamente as lacunas, mas apenas minimizar a perturbação visual que as perdas causam. Além disso, respeita-se o material original, não o substituindo, nem o ocultando com adições, e a reintegração cromática é realizada de forma que, através de observação de pormenor, seja possível distinguir entre o que é e o que não é original. Acresce que na intervenção são usados materiais estáveis e compatíveis com os originais, algo que mais uma vez implica o estudo material da obra, e a sua aplicação é feita de forma, tanto quanto possível reversível, que não impeça posteriores intervenções. Dizer-se que a obra está como nova ou que nem se dá pelo restauro, se em tempos era um elogio ao restaurador, de modo algum o é na actualidade relativamente a um conservador-restaurador. Antes pelo contrário, é uma forma de se pôr em causa o seu trabalho.
Hoje, a actividade de Conservação e Restauro é uma área difícil e complexa para a qual, de forma alguma, é suficiente o jeito manual. A Conservação e Restauro requer, no mínimo cinco anos de formação superior que, além das disciplinas especificamente de Conservação e Restauro, integra disciplinas das Ciências Exactas e Naturais, por um lado, e das Artes e Humanidades, por outro. É nestas áreas que assenta o indispensável estudo prévio das obras, que tem como objectivo o seu conhecimento do ponto de vista técnico-material e do ponto de vista histórico-artístico, no qual, por sua vez, se sustenta a tomada de decisão sobre o que fazer e como fazer.
Estes são alguns dos princípios estruturantes da Conservação e Restauro tal como hoje é entendida e, naturalmente, da formação em Conservação e Restauro oferecida pelo IPT através de uma licenciatura e de um mestrado que, em conjunto, proporcionam a base indispensável para ingresso na profissão de conservador-restaurador. Esta formação – que numa rara, difícil e simultaneamente estimulante combinação, inclui disciplinas de Conservação e Restauro, Física, Química, Materiais, História da Arte, Desenho e Fotografia – é reconhecida pela Rede Europeia para o Ensino da Conservação e Restauro (ENCoRE). Apenas três instituições portuguesas, entre as quais o IPT, integram esta rede, não obstante as numerosas formações ditas em Conservação e Restauro que surgem por todo o lado mas que, na realidade, não são reconhecidas nem pela ENCoRE, nem pela Associação Profissional dos Conservadores-restauradores de Portugal (ARP).
Tudo começou – em Tomar e em Portugal – em 1989, quando foi criado o Bacharelato em Tecnologia em Conservação e Restauro na Escola Superior de Tecnologia de Tomar. Por isso esta é a escola que há mais tempo oferece formação em Conservação e Restauro em Portugal e acesso à profissão de conservador-restaurador.
António João Cruz, "A Conservação e Restauro em Tomar", O Templário, 38(1851), 2024-06-13, p. 7