Quem tem medo da avaliação por pares?

António João Cruz

 

Nos últimos dias têm-se sucedido na comunicação social, nomeadamente no Público, diversos textos sobre um assunto importante no meio académico e científico que não só origina opiniões contraditórias, como estas são por vezes formuladas de modo inflamado que parece evocar discussões entre adeptos de adversárias equipas de futebol. De um lado estão os seguidores de um sistema de publicação centrado na avaliação por pares (peer review) e nas revistas de circulação internacional que integram um mercado dominado por um reduzido número de editoras. Do outro, os que entendem que a publicação científica não deve estar sujeita à ditadura desse sistema internacional que ignora as especificidades nacionais dos temas e da língua em que estes se exprimem. Além disso, dizem alguns, a avaliação por pares é censura ou, dizem outros, é algo a que não se deve submeter quem já prestou provas e tem carreira feita.

Nesta batalha, com crescente frequência têm-se misturado outras questões que, rigorosamente, não são inerentes à avaliação por pares. A principal é o peso de um reduzido número de editoras e, sobretudo, os valores que estas exigem pelo acesso aos artigos que publicam, submetidos por autores que nada cobram, avaliados por pares que igualmente nada recebem. Ainda que este fosse o modelo de publicação quando as revistas existiam apenas em papel, as críticas só surgiram quando o formato digital se impôs. Mais recentemente, a indignação virou-se contra outro modelo que tais editoras começaram a introduzir no mercado: revistas disponibilizadas livremente, mas à custa do pagamento pelos autores de taxas de processamento dos artigos – o acesso aberto dourado.

No entanto, este lucrativo negócio não é sinónimo de avaliação por pares e há um número razoável de revistas com essa avaliação que, também assentes em matéria-prima obtida gratuitamente, nada cobram pelo acesso – o acesso aberto platina. Por outro lado, há revistas que também têm aquelas taxas mas sem qualquer avaliação: as que, há mais de uma década, Jeffrey Beall designou por predatórias. Portanto, avaliação por pares é uma coisa, negócio de editoras é outra.

As críticas à avaliação por pares são frequentemente dirigidas contra as avaliações feitas através do número de citações que uma publicação tem em determinadas bases de dados bibliográficas, designadamente a Web of Science e a Scopus – também elas envolvidas no negócio (a segunda, inclusivamente, pertence a uma das grandes editoras). De facto, essa é uma forma de avaliação por pares feita após publicação; contudo, a principal é a que ocorre antes da publicação, quando é decidido se um artigo é ou não aceite – e isso é suposto ser independente das bases de dados.

Parece-me que, no fundo, o confronto de perspectivas a respeito da publicação é, em grande parte, uma ilustração das duas culturas descritas numa célebre conferência de 1959 por C. P. Snow, físico de formação, escritor de profissão: "Intelectuais de um lado – do outro cientistas, sendo os físicos os mais representativos. Entre os dois, um fosso de incompreensão mútua – por vezes, hostilidade e desdém, mas sobretudo falta de compreensão. Cada um tem uma imagem curiosamente distorcida do outro. As suas atitudes são tão diferentes que, mesmo ao nível da emoção, pouco têm em comum". Em áreas que ficam entre as Ciências e as Humanidades, como a Conservação e Restauro, isso é particularmente evidente e observa-se também na importância dos artigos e do trabalho de equipa, de um lado, e dos livros e do trabalho individual, do outro.

É incontestável que a publicação científica transformou-se num negócio para todos, mas, sendo uma actividade humana, seria possível não acontecer aqui o que vemos em todas as outras actividades? Por outro lado, julgo que não se deve confundir a ideia da avaliação por pares com a sua concretização. Sujeitar a publicação aos pareceres de quem – pelo distanciamento e não por um conhecimento superior – está em condições mais favoráveis do que os autores para detectar eventuais falhas metodológicas ou deslizes factuais, mas sem restringir o espaço para a divergência de interpretações ou opiniões, é uma ideia não só racional como indispensável neste tempo cada vez mais de notícias falsas e factos alternativos. Tal não significa que não possa falhar. É claro que falha, ainda que algumas experiências, com grande divulgação, que se julga mostrarem isso mesmo rigorosamente não o façam: foram realizadas com o objectivo de desmascarar determinados estilos académicos (o caso Sokal, descrito por Alan Sokal e Jean Bricmont em Imposturas Intelectuais) ou as revistas predatórias (como fez Jorge Buescu) e nalguns casos, pelo contrário, reforçam a importância da avaliação por pares.

Peço desculpa, mas para terminar apresento um caso pessoal que, por isso, conheço bem: em 2005 estive envolvido na criação de uma revista – Conservar Património, publicada pela Associação Profissional de Conservadores-Restauradores de Portugal -, fui seu director até 2019 e quando deixei o cargo a mesma estava indexada nas bases de dados Web of Science e Scopus, onde tinha alcançado a 20.ª posição entre as 65 revistas de Conservação e Restauro aí incluídas, e tinha atingido o 1.º quartil do ranking da Scimago nessa área. Ou seja, não obstante ser de uma organização insignificante no mercado da edição e privilegiar a publicação em português, a revista chegou a um lugar com alguma importância entre as mais reputadas de todo o mundo. É certo que uma andorinha não faz a Primavera, mas este caso mostra que nas áreas com interesses nacionais, ainda que com características presumivelmente pouco favoráveis, pode-se conquistar uma posição reconhecida na edição científica assente na avaliação por pares e nos números de citações. Contudo, deve também dizer-se que daqui não se conclui que não há vida para além desses indicadores.

 


António João Cruz, "Quem tem medo da avaliação por pares?", Público, 2021-10-15, https://www.publico.pt/1981104